Metafísica: o que é?
De todas as áreas da filosofia, esta talvez seja das mais mal compreendidas entre o grande público, e por vezes mesmo nas universidades. A metafísica é apenas o estudo de vários problemas filosóficos sobre a realidade, problemas que são insuscetíveis de ser apropriadamente abordados com os métodos matemáticos e experimentais da física e de outras ciências da natureza. Ou seja, a metafísica não tem grande coisa a ver com espiritualidades nem com o sobrenatural, como por vezes se pensa, nem é uma área mística da filosofia, nem especialmente problemática — nesta área encontramos tantos problemas em aberto como na epistemologia, na ética, na filosofia da arte ou na filosofia da linguagem.
A bibliografia em língua portuguesa…
…que aborda a metafísica é diminuta, mas felizmente temos já algumas obras apropriadas para quem tem curiosidade sobre o tema.
- Enigmas da Existência, de Earle Conee e Theodore Sider (tradução de Vítor Guerreiro, Editorial Bizâncio)
Escrito num tom descontraído, e de pequena dimensão, este é um dos melhores primeiros livros para ler sobre o tema. São abordados temas como a natureza das verdades necessárias, os universais, o livre-arbítrio, a natureza do tempo, a identidade das pessoas ao longo do tempo e a pergunta de Leibniz: por que razão há algo em vez de nada?
- Os Problemas da Filosofia, de Bertrand Russell (tradução minha, Edições 70)
Russell aborda com a elegância e inteligência aguda que lhe são reconhecidas alguns temas de metafísica neste pequeno clássico que não para de conquistar novos leitores desde que foi pela primeira vez publicado em 1912. Este livro poderá servir também para acabar de vez com o mito comum de que Russell era empirista, pois defende aqui muito claramente a sua posição realista quanto aos universais, coisa que nenhum empirista encartado teria a coragem de fazer. De destacar o capítulo sobre a verdade, onde Russell procura desfazer a confusão ainda hoje comum entre o problema epistemológico da verdade (como sabemos que o que consideramos verdadeiro o é realmente?) do metafísico (quando temos uma convicção verdadeira, o que é responsável pela sua verdade?).
- O Nomear e a Necessidade, de Saul Kripke (tradução de Ricardo Santos e Teresa Filipe, Gradiva)
Este livro regista três palestras que o autor proferiu em 1970 e nas quais se entrecruzam temas de filosofia da linguagem, filosofia da mente e metafísica. O impacto impressionante que este livro teve na filosofia de finais do século passado, e continua a configurar a filosofia contemporânea, é atestado pelo próprio renascimento da metafísica. Apesar de esta nunca ter inteiramente desaparecido do firmamento filosófico (como se vê no caso de Russell), vários movimentos filosóficos do século XX foram responsáveis por introduzir tantas confusões conceptuais que tornavam o trabalho filosófico da reflexão metafísica quase impossível. Kripke teve o efeito salutar de pôr os pontos nos i, estabelecendo com muita nitidez a diferença crucial entre problemas que dizem respeito à realidade, problemas que dizem respeito ao nosso conhecimento da realidade e problemas que dizem respeito à linguagem. O seu famoso necessário a posteriori, como antes o sintético a priori de Kant, mas de modo mais plausível e radical, teve e continua a ter um impacto importante em filosofia, e ajudou a excluir da metafísica elementos linguísticos e epistémicos que só confundiam os filósofos.
- Essencialismo Naturalizado, de Desidério Murcho (Ângelus Novus)
Um dos trabalhos que levo a cabo neste pequeno livrinho, agora de novo disponível nas lojas Amazon em formato Kindle e em papel, é precisamente mostrar a plausibilidade da hipótese metafísica forte de Kripke, procurando mostrar também as confusões que a rodeiam e nas quais quase sempre se baseiam as rejeições daquelas ideias. Apesar de o ter escrito com muita clareza e precisão, pressupõe da parte do leitor já alguma familiaridade com a filosofia, mas não tanta assim. O tema central discutido neste livro é a ideia de Kripke de que substâncias naturais como o ouro ou a água têm uma essência, e organismos como os seres humanos ou os gatos têm propriedades essenciais. Os próprios conceitos de essência e de verdade necessária são cuidadosamente apresentados e esclarecidos.
- “Linguagem e Ontologia Social”, de John Searle (tradução de Vítor Guerreiro), http://criticanarede.com/lingmentaccao.html
Termino com um artigo que aborda um tema recente da metafísica, e ainda pouco conhecido no país: a ontologia das instituições sociais. Searle foi um pioneiro nesta área com o seu livro de 1995 inédito em Portugal, The Construction of Social Reality, e, como é nele habitual, escreve com muita clareza e simplicidade. Neste artigo, Searle faz um pouco o ponto da situação de uma área que entretanto evoluiu muitíssimo. Para se ter uma ideia do que está em questão pense-se no dinheiro: não se reduz certamente ao papel em que é impresso, ou ao metal, nem aos algoritmos bancários que nos dão um número no extrato. O dinheiro é uma entidade social porque funciona em função dos que os seres humanos, coordenadamente, conseguem fazer (e a linguagem desempenha aqui um papel crucial). A tentação impensada é que toda e qualquer entidade social — “construção social”, na gíria das zonas mais anémicas da cultura académica — é como que subjetiva, digamos, ou inteiramente arbitrária e totalmente dependente de nós. Tudo isto é falso, e basta pensar que se o dinheiro, por exemplo, fosse uma entidade social totalmente arbitrária todos seríamos ricos porque toda a gente quereria convencionar que toda a gente é rica. As instituições sociais, apesar de criadas e mantidas pelos seres humanos, só funcionam dentro de apertadas condições metafísicas que nós não controlamos — é a realidade extra-humana que manda aqui crucialmente, apesar de nós mandarmos também um pouco.
*****
[texto de Desidério Murcho, escrito para O meu Baú. Como ficou dito numa “entrevista“, onde revela algumas das suas preferência (musicais, filosóficas…), o autor é professor em filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto, no Brasil, apesar de ser português. É autor de vários livros de filosofia, incluindo manuais para o ensino secundário.
Esta é a primeira publicação de uma série pensada para quem decida entrar em determinadas áreas: da filosofia, da música, da história… A segunda, de Rolando Almeida, apresenta a história do rock em 10 discos marcantes]