"O Ser e o Nada"

“O Ser e o Nada” de Sartre

Edições 70 publicou, em agosto de 2021 e com tradução de Víctor Gonçalves, O Ser e O Nada. Pretexto para algumas notas sobre esta obra de Sartre.

Escrito durante a ocupação nazi, O Ser e o Nada : Ensaio de Ontologia Fenomenológica é um tratado de Jean-Paul Sartre, o mais célebre do seu autor, publicado em 1943. O livro, que marcou uma época a braços com o desmoronamento de uma civilização, é considerado um dos textos fundamentais do século XX e um momento crucial no desenvolvimento do existencialismo, designadamente, o existencialismo ateu.

Em Grandes Livros de Filosofia [Lisboa: Edições 70, 1998, p. 209], Nigel Warburton classifica O Ser e o Nada como “a bíblia do existencialismo”. E continua:

No entanto, não obstante a sua centralidade no contexto do movimento que varreu a Europa e a América do Norte nos anos do pós-guerra, revela-se surpreendentemente obscura. Apenas um reduzido número de existencialistas de café poderia ter lido e compreendido a maior parte deste livro. A introdução, em particular, é exasperantemente difícil de perceber, em especial se não se possuir quaisquer conhecimentos acerca da filosofia do velho continente. Contudo, apesar dos sentimentos de desespero iniciais sentidos pela maioria dos que tentam ler o livro de ponta a ponta, vale a pena ser perseverante. O Ser e o Nada é uma das raras obras filosóficas escritas no século XX que lidam, de facto, com questões fundamentais acerca da condição humana. Nas suas passagens mais lúcidas, pode ser a um tempo reveladora e estimulante. A experiência de Sartre como romancista e dramaturgo torna-se manifesta nas notáveis descrições de situações particulares que dão corpo a uma parte substancial do livro.

O tema central de O Ser e o Nada está sintetizado na frase enigmática “a natureza da consciência é, simultaneamente, ser o que não é e não ser o que é”. Embora tal afirmação possa parecer pseudoprofunda numa primeira leitura, ela constitui, de facto, um sumário da visão de Sartre acerca do que significa ser humano.

"O Ser e o Nada" de Sartre

A existência precede a essência

Para Sartre, o sentido das nossas vidas não é predeterminado nem por Deus nem pela natureza, não há nenhuma essência que preceda a existência: o que nos define não é dado a priori, mas decorre das escolhas que fizermos. Primeiro existimos, e só depois nos definimos. Não existe natureza humana à qual tenhamos irresistivelmente de obedecer: estamos condenados a ser livres e somos os únicos responsáveis pelos nossos destinos: “recusar escolher é escolher não escolher”.

No âmago destas posições, está a conceção sartriana de consciência, influenciada pela fenomenologia de Husserl e pela ontologia de Heidegger. Como a consciência é sempre consciência de qualquer coisa, ela própria não é nada enquanto não visa algo fora de si.

Ser-para-si e ser-em-si

Nos fundamentos da ontologia de Sartre encontra-se a distinção de duas regiões de ser (duas formas de existência), ao mesmo tempo inextricavelmente ligadas e violentamente distintas: o ser-para-si (a existência consciente, existência característica do ser humano) e o ser-em-si (existência não consciente, como o ser de uma pedra numa praia). Antes de tudo, o Homem tem de estar consciente de si mesmo. Enquanto que a matéria “resiste”, o objeto “consiste”, o animal “subsiste”, só o Homem existe verdadeiramente: ele tem sempre consciência de ser. É aquilo que Sartre chama o “ser-para-si”. O ser-para-si, a consciência humana, caracteriza-se por ser permanente projeção para o exterior. Daí os conceitos filosóficos de angústia e de má-fé e a problemática relação com os demais, tipificada na investigação sobre o desejo sexual e o olhar do Outro.

A má-fé

O Homem que recusa tomar consciência do seu ser submerge-se naquilo que Sartre denomina a “má-fé” e num universo que é o dos “pulhas”. A má-fé é uma condição em que se entra quando os indivíduos negam a sua verdadeira natureza numa tentativa de se transformarem num eu que eles não são. Má-fé é fingir-se ser algo que não se é.

A ilustração clássica desta noção é o empregado de mesa de Sartre (Sartre utiliza também a descrição do primeiro encontro de uma mulher com um homem que tem pretensões sexuais a seu respeito); o empregado é sempre um pouco amigável demais, prestável demais, demasiado disposto a desempenhar o papel de um empregado de mesa, em vez de ser aquele eu menos amigável, menos útil e menos parecido com um empregado de mesa que ele seria se não estivesse a assumir a identidade de “empregado de mesa”.

Ao assumir o papel de “empregado de mesa”, a personagem de Sartre negou-se a si mesma, “coisificou-se”, ao negar o seu eu autêntico, o seu ser-para-si, com todas as características que lhe eram peculiares mas não apropriadas para um empregado de mesa. O filósofo sublinha o facto de o empregado, por muito que se esforce para se tornar no papel que representa, não poder ser um empregado da mesma forma que um tinteiro é um tinteiro. Uma entidade para-si não se pode, por meio de um ato de vontade, metamorfosear numa entidade em-si (exceto, talvez, se cometer suicídio).

O outro

O existencialismo sartriano consiste em opor o ser livre, cuja existência e liberdade se confundem, ao ser — coisa em si — para quem tudo está antecipadamente determinado e que não possui qualquer margem, qualquer domínio de libertação possível. A estes dois níveis de seres vai suceder, em Sartre, em terceiro grau, o “ser-para-o-outro”. O homem não vive solitário, num mundo de onde os outros teriam sido suprimidos. Ele não pode fechar-se, como Montaigne, na sua biblioteca, nem como Robinson numa ilha deserta. A existência dos outros vai assim obrigá-lo a uma segunda superação. Ele tem de transcender o “em si” para se elevar até ao “para si”. Ele vai ter de se ultrapassar de novo e até de se superar para atingir a atitude do “para o outro”.

Um bom terço da obra é consagrado ao problema da existência do outro, partindo do solipsismo clássico e opondo-lhe as atitudes de Husserl, de Hegel, de Heidegger. De facto, para Descartes ou Espinosa, só existe conhecimento de si, por si e para si. Segundo Leibniz, a mónada não tem portas nem janelas e nós não podemos, pois, comunicar uns com os outros a não ser numa perspetiva muito superficial. Malebranche, falando do outro, reduz, com desdém, a sua compreensão a um simples «conhecimento por conjetura». Até ao século XIX, nenhum filósofo acreditou verdadeiramente na existência metafísica do outro.

É por isso que Sartre dá um grande passo em frente quando afirma que “eu só posso definir-me em relação ao outro”. O “para-si” é apenas uma etapa: é preciso chegar ao “para-o-outro”. O homem vai definir-se muito progressivamente por meio da história das suas relações com o outro. Mas Sartre não acredita numa verdadeira relação de simpatia entre os seres. Inclina-se mais para uma espécie de apatia prévia que faria dos seres inimigos fundamentais e permanentes. É bem conhecido: o amor é cego. Mas o ódio permite ser mais clarividente. Ninguém nos conhece melhor do que o nosso pior inimigo!

O conhecimento do outro vai portanto permitir definir-me a mim mesmo por aproximações sucessivas: “Assim, posso apenas ver-me como qualidade transcendente a que os atos do outro e as suas intenções se referem; mas como a objetividade do outro destrói a minha objetividade para com ele, é enquanto sujeito encarcerado que me apreendo como aquilo a que se referem as suas intenções e os seus atos. Afirmo-me, pois, opondo-me ao outro e realizo o que pode ser o ‘para-o-outro’ olhando-me na sua própria imagem”. A nossa ação, ela própria, apenas pode realizar-se em e por meio da nossa relação ao outro. Sartre é antes de tudo um pragmatista, O “fazer” é muito mais essencial do que o “pensar” ou o “dizer”. É assim que ele pôde defender: “Fazer, e ao fazer, fazer-se e ser apenas aquilo que se faz”.

A importância de O Ser e o Nada

A repercussão desta obra foi considerável. Venderam-se milhares de exemplares de 1943 a 1946 e a escola existencialista desenvolveu-se após a sua publicação. Como testemunha disso, o êxito do lançamento de Temps modernes, cujo primeiro número, saído em Outubro de 1945, tinha conseguido reagrupar, para além dos dois discípulos mais fiéis de Sartre (Simone de Beauvoir, a quem é dedicado O Ser e o Nada, e Merleau-Ponty), pensadores tão diferentes como CAlbert Camus, Raymond Aron, Jean Wahl, Michel Leiris, Maurice de Gandillac, Georges Bataille, Emmanuel Levinas, etc.. Não é exagerado dizer que O Ser e o Nada foi, de 1943 a 1970, o livro-culto, a obra de referência por excelência, o texto mais frequentemente citado por todos os jovens filósofos que se reconheciam no existencialismo.

A partir de 1970, o movimento estruturalista atacou de certa forma este livro guia, que hoje em dia já não tem a mesma influência junto dos alunos de Filosofia. De qualquer modo, a sua importância histórica foi considerável e o seu lugar no movimento das ideias do século XX situa Sartre como um dos “modelos” das gerações que se sucederam de 1940 a 1990 ou seja, durante meio século de pensamento ocidental. Apesar de o existencialismo hoje ser levado menos a sério (e a figura de Sartre ser menos venerada) do que no período do pós-guerra, a obra do filósofo francês continua a ter muito para oferecer.

***

Além da citada obra de Nigel Warburton (que em 12 páginas faz uma boa abordagem a O Ser e o Nada), o texto presente deve (quase) todo o seu conteúdo a:

  • AAVV. Dictionnaire des Philosophes. 2ª ed. Paris: Éditions Albin Michel, 2001
  • HUISMAN, Denis. Dicionário das Mil Obras de Filosofia. Porto: Porto Editora, 2001
  • RUSSELL, James M.. Um breve guia para Clássicos Filosóficos. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2016

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