Embora os qualia invertidos sejam o tema principal do texto seguinte, o título original do capítulo, copiado do livro Mini Filosofia, é Locke: estar dentro da própria cabeça.
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Esta foi provavelmente a primeira experiência mental que fez a filosofia ganhar vida para mim. É uma experiência que se pode tentar com amigos ou familiares, e garanto que pelo menos um deles terá tido este pensamento. Aposto que tu mesmo o terás tido.
É o problema dos “qualia invertidos” (experiências subjetivas) e é, como diz o filósofo norte-americano Daniel Dennett, “um dos memes mais virulentos da filosofia”. Embora muitos filósofos tenham trabalhado nas variantes, a versão formulada por John Locke no século XVII é talvez a mais popular e duradoura.
Em termos simples, questiona: como podes ter a certeza de que a cor que eu vejo é a mesma que tu vês?
Quando se vê um morango como sendo vermelho, eu posso vê-lo como azul, mas, devido à nossa língua e cultura comuns, ou à realidade social de convivência, ambos dizemos “vermelho”. Podemos tentar perguntar “de que cor é o céu?” a um amigo, e podemos ambos dizer “azul”, mas não há forma de saber qual o aspecto real para cada um de nós. Na maioria das vezes, o problema é formulado utilizando exemplos visuais, mas poderia ser estendido a qualquer sensação que tivermos. Será que a laranja da Jill sabe ao mesmo que a laranja do Jack? Tudo o que podemos dizer é que “sabe a laranja”… mas o que é que isso significa para ti?
Em primeiro lugar, este é um problema de conhecimento, porque significa que nunca poderemos saber o que os outros experimentam. Há toda uma categoria ou classe de coisas — coisas nas nossas cabeças — sobre as quais nunca poderemos saber a respeito uns dos outros.
Em segundo lugar, nunca podemos, portanto, atribuir um “valor de verdade” à alegação “x é vermelho” sem a advertência “a mim, x parece-me vermelho” (isto levanta todo o tipo de discussões complicadas para teorias da verdade que não podemos explorar aqui). Isto comprometer-nos-ia então a um relativismo em que a verdade está sujeita à nossa própria mente.
Em suma, os qualia invertidos são um problema de ceticismo […], em que temos de admitir que não conseguimos conhecer toda uma série de coisas, nomeadamente o que se passa na “imaginação” de outra pessoa. Tirando tudo isto, penso que é apenas um fascinante quebra-cabeças. O problema é uma grande introdução à filosofia, e é muitas vezes a primeira pergunta que os filósofos em ascensão fazem no caminho para questões mais profundas e espinhosas.
[Jonny Thomson. Mini Filosofia: o pequeno livro das grandes ideias. Lisboa: Minotauro, 2021, pp. 282-283]
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Notas
||| O Baú tem, aqui, um índice (em crescimento) de textos sobre Locke.
||| O livro Mini Filosofia é um interessante modo de iniciação à filosofia, a partir de “questões da vida”. Na contracapa, é apresentado nestes termos:
Porque gostam as pessoas de ver filmes de terror? Devemos apostar na existência de Deus? Porque é que o prazer é melhor do que a dor? E quando é que um pato não é um pato?
Mini Filosofia é uma viagem fascinante com destino ao que algumas das maiores mentes dos últimos 2500 anos têm a dizer sobre as grandes questões da vida, e por que se mantêm, ainda hoje, tão relevantes.
Cobrindo tudo (ou quase tudo) — desde a estratégia de Sun Tzu para ganhar em jogos de tabuleiro até às perceções de Freud sobre a nossa “pulsão de morte”; a crença de Simone de Beauvoir de que o instinto maternal é um mito; o facto de Schopenhauer provavelmente não ter sido muito divertido em festas —, estas mini meditações vão enriquecer a mente do leitor e, garantidamente, desafiá-la.