Livre-arbítrio: o que é; onde está o problema?

[…] podemos dizer que um ser vivo é tanto mais livre quanto maior for o conjunto das ações que pode realizar voluntariamente. De acordo com isto, os macacos são mais livres que as abelhas, e os seres humanos mais livres que os macacos, ainda que um macaco encerrado numa jaula ou um ser humano atado a uma árvore sejam menos livres que outros congéneres seus não submetidos a essas limitações.

A noção filosófica de “livre-arbítrio”

Este sentido do conceito de liberdade, acho que bastante próximo do que utilizamos na linguagem comum quando dizemos que uma pessoa ou um animal são mais ou menos livres, não está sujeito a nenhuma dificuldade importante das […] que se referem […] à ideia de liberdade que costuma ser habitual nas discussões filosóficas, e a que se costuma dar um nome mais sofisticado, como gostam os filósofos. Refiro-me, claro está, à noção de livre-arbítrio. A diferença principal entre as duas noções é que o conceito filosófico acrescenta algo mais ao único requisito (o da voluntariedade) que estabelecia a definição que demos acima. Este “algo mais” consiste nos dois princípios seguintes:

  1. Uma ação só é livre se tivesse sido possível o sujeito ter atuado de outra maneira (princípio de existência de alternativas).
  2. Uma ação só é livre se o sujeito que a realiza for o causante último da ação (princípio do controlo último).
Livre-arbítrio em "En busca del Yo"

Note-se que, ao contrário da voluntariedade ou involuntariedade de uma ação, que é algo relativamente fácil de determinar (não só para o próprio indivíduo que atua e decide, como inclusive para um observador externo: pensemos no árbitro que tem de julgar se um futebolista tocou a bola com a mão de forma voluntária ou involuntária), os pontos 1 e 2 que acabamos de referir são tudo menos óbvios: como podes averiguar se o universo continha a possibilidade física de teres decidido fazer algo diferente do que decidiste?, como podes identificar todas e cada uma das causas que te levaram a fazer o que fizeste, de modo a estar seguro de que não houve nenhuma que te tenha “forçado” a fazê-lo? Por muito “evidentes” que nos possam parecer as ideias de que “tinhas mais de uma alternativa” ao escolher como escolheste e de que tu és “a pessoa responsável última” por ter decidido fazer o que fizeste, basta pensares um pouco e verás que seria muito difícil demonstrá-lo.

Os filósofos da Antiguidade não se preocuparam excessivamente com esta noção, digamos, moderna, de livre-arbítrio. A liberdade era para eles mais um conceito que hoje diríamos “jurídico”: a liberdade era, sobretudo, aquilo que distinguia uma pessoa livre de uma pessoa escrava. E, ainda que alguns autores parece que estavam interessados na relação entre a ideia de liberdade e a questão do destino ou fatalidade (fatum), não parece que fosse um tema a que se dedicasse muita atenção. Talvez os únicos exemplos de filósofos gregos a quem a compatibilidade entre a fatalidade e a liberdade pareceu um problema foram os estoicos e os epicuristas. Os primeiros resolveram o problema considerando que o importante não é se as nossas ações são evitáveis ou inevitáveis (os estoicos pensavam que essas ações são inevitáveis, pois segundo eles tudo o que acontece está predestinado segundo um encadeamento racional de causas e efeitos), mas se uma ação é forçada por causas “externas” ou se, pelo contrário, surge da própria natureza “interna” da cada pessoa, pensando eles que a vontade era, precisamente, esse tipo de causa “interna”. Os segundos optaram pela solução contrária: negar que tudo esteja predestinado e admitir que os átomos (que segundo eles eram o componente último do universo) podem de vez em quando mover-se ao acaso. Epicuro seria, assim, o pai do indeterminismo […].

O problema do livre-arbítrio tornou-se mais premente para os filósofos cristãos, pois uma liberdade humana radical parecia dificilmente compatível com a omnisciência e omnipotência divinas: se Deus sabe desde antes do princípio dos tempos em que partido votarás nas próximas eleições, como pode a tua decisão ser realmente livre? E se nada pode acontecer contra a Sua vontade, como podes tu tomar uma decisão diferente da que Ele quer que tu tomes? Mas, por outro lado, o livre-arbítrio parecia também necessário como fundamento da responsabilidade moral: como podia uma ação ser um pecado, se quem a realizava não podia ter evitado de modo algum realizá-la? Também era importante manter a crença na liberdade humana para justificar que Deus não era o responsável por muitos dos males que há no mundo. Estes debates teológicos são apaixonantes mas afastam-nos demasiado do nosso tema.

A partir do século XVII, a ciência moderna começou a contribuir com um contexto um pouco menos especulativo para o debate sobre o livre-arbítrio. A questão mais importante não será já a sua possível compatibilidade ou incompatibilidade com um Deus todo-poderoso, ou com uma imprecisa predestinação, mas com as leis naturais suscetíveis de ser demonstradas empiricamente e formuladas com exatidão matemática, leis que os cientistas estavam a começar a descobrir e que os filósofos da época começaram a tomar como fundamento último da realidade. No século XVII, o filósofo racionalista Espinosa nega de maneira rotunda que o livre-arbítrio possa existir, pois tudo está submetido às leis da natureza, e aos humanos só lhes parece que as suas decisões são livres porque, conquanto se deem conta de que tomam uma decisão, ignoram quase por completo as causas pelas quais chegaram a tomá-la […]. Na mesma época, Hobbes e outros filósofos empiristas admitem a liberdade humana, mas unicamente no sentido de que, quando alguém deseja algo, não existam impedimentos para que o consiga (ou seja, num sentido semelhante ao de deixar “em liberdade” um animal, como vimos mais acima). Já Leibniz, outro dos grandes filósofos racionalistas, admitiu que as mentes (as “substâncias inteligentes”) podiam “suspender” a validade das leis naturais e atuar “unicamente segundo a espontaneidade da sua própria potência, como por uma espécie de milagre privado» […]. Em épocas posteriores, as afirmações como a de Leibniz foram ficando cada vez menos sustentáveis, à medida que ia perdendo credibilidade a ideia de que a mente é um tipo de “substância sobrenatural”[…].

[Jesús Zamora Bonilla. En busca del yo : una filosofía del cerebro. [Barcelona], EMSE EDAPP, S.L. [D.L. 2018], pp. 64-67. Trad. António R. Gomes]

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||| Este artigo pode servir de apoio à lecionação/aprendizagem da rubrica A Ação Humana – Análise e compreensão do agir do programa de Filosofia do 10º ano e das Aprendizagens Essenciais.

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