Vítor Cardeira: 2020 em remates, livros, filmes e música

Convidei alguns dos meus amigos para nos revelarem os seus top de 2020: livros, filmes, discos, notícias… o que entendessem que mereceria destaque. A seguir, a síntese de Vítor Gil Cardeira, professor de Antropologia e História.


Um remate à barra, seis livros, três filmes e um álbum musical

O ano de 2020 vai ficar na memória de todos nós e na memória da humanidade. Embora “o passado seja uma terra estranha…” e nos possa sempre trazer novidades que nos sacodem a vida – dependemos mais do que o passado nos trouxer no futuro, do que do próprio futuro -, a pandemia, em si, vai ser um dos eventos da nossas vidas (no plural porque, afinal, vivemos muitas). Tantas que, muitas vezes, não nos damos conta de algumas e, outras vezes, pensamos que elas nos são estranhas e longínquas.

Este ano será o ano da peste!

Limitados nas nossas liberdades individuais e coletivas, travados na louca e desenfreada e, as mais das vezes, inútil correria, pensaríamos que poderia ser uma oportunidade única de desacelerar e refletir sobre a vida e os objetivos que nos propomos, e que a sociedade nos determina, atingir enquanto seres à procura de equilíbrios emocionais e físicos: natureza e cultura. Da natureza carregamos instintos filogenéticos que nos impõem, determinam, comportamentos impossíveis de expurgar; da cultura, não menos determinante, outros se nos deparam como obstáculos e rampas escorregadias conduzindo-nos, bastas vezes, contra a própria natureza. O mais fácil, e aplaudido, é seguir os cascos da manada, mesmo que pensemos que não caminhamos, vísceras com vísceras, no seu seio.Limitados nas nossas liberdades individuais e coletivas, travados na louca e desenfreada e, as mais das vezes, inútil correria, pensaríamos que poderia ser uma oportunidade única de desacelerar e refletir sobre a vida e os objetivos que nos propomos, e que a sociedade nos determina, atingir enquanto seres à procura de equilíbrios emocionais e físicos: natureza e cultura. Da natureza carregamos instintos filogenéticos que nos impõem, determinam, comportamentos impossíveis de expurgar; da cultura, não menos determinante, outros se nos deparam como obstáculos e rampas escorregadias conduzindo-nos, bastas vezes, contra a própria natureza. O mais fácil, e aplaudido, é seguir os cascos da manada, mesmo que pensemos que não caminhamos, vísceras com vísceras, no seu seio.

E, que já me esparramei no chão dos incautos, para minimizar este arrazoado lacrimal, vamos ao que interessa e tentar corresponder ao desafio do anfitrião.

Um ano de diversas leituras

Não li mais, este ano, do que noutros anos. Sendo a leitura um dos meus maiores prazeres desde que aprendi a ler, este foi mais um ano de diversas leituras. Até há poucos anos, só lia um livro de cada vez. Nos últimos, porém e talvez porque a idade me tornou mais consciente da proximidade do fim, comecei a ler dois e três ao mesmo tempo. Ficção e poesia, ou ensaio e histórico, ou, ainda, clássicos antigos e escritores e pensadores modernos. Assim, para evitar grandes confusões. Fui, também, tentando preencher lacunas, buracos negros, que me ficaram do passado. Lendo livros do cânone que se me tinham escapado. E assim foi, também, este ano. Para isso tenho tido o suporte incomensurável, e impagável, do meu, nosso, amigo Carlos Lopes, que tem a melhor biblioteca privada do Sotavento algarvio.
Temos então:

Livros de 2020

Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos

de Olga Tokarczuk
Edição: Cavalo de Ferro

Claro que nunca tinha ouvido falar na senhora. O Prémio Nobel abriu-me a curiosidade.

Um livro extraordinário. Muito bem escrito, abordando temáticas que questionam o homem e a sua relação com os outros, a cidade e o campo, os intelectuais e os camponeses iletrados, os direitos dos animais e as diversas formas de ser feliz. Ou, ainda, o direito a ser feliz sendo triste…

Um romance mordaz e, por vezes, desconcertante, de uma grande escritora.


Conduz o Teu Arado sobre os Ossos dos Mortos está também no top 5 das leituras de Aníbal Sousa em 2020.


A tarde de um escritor

de Peter Handke
Edição: Editorial Presença

Mais uma vez o Nobel me fez voltar a ler Peter Handke.

Um escritor às voltas com as palavras e a capacidade de criar. O abandono da palavra como mote para as palavras saírem daquilo a que o autor chama “impotência descritiva”.

Uma escrita tensa, esguia, saltando de género e derramando-se nos campos da poesia, do teatro, do ensaio e, até, do rádio e cinema.

Para vos ser sincero, este pequeno livro de Handke não me entusiasmou por aí além.

"Montanha mágica", uma das leituras de Vítor Cardeira, em 2020.

Montanha Mágica

de Thomas Mann
Edição “Livros do Brasil”

Um dos tais monstros sagrados da literatura mundial que não tinha ainda lido. Volumoso, denso e de uma intensidade psicológica constante, deixa o leitor de rastos a cada passo da sua leitura.

Uma narrativa brilhante e poderosa, serena e provocadora, até perversa, conduz-nos à realidade de um sanatório para tuberculosos em alta montanha. Aí se encontram doentes de todo o continente europeu com desenvolvimentos sanitários diversos, mas que levam quase sempre à morte. É este tempo até ao fim que é o grande eixo à volta do qual se desenrola o livro. O tempo e os tempos, a aceleração e o lentificar dos dias. A doença e a morte.

Grande livro para ler… devagar.

Curiosamente, o sanatório onde se desenrolam os acontecimentos narrados situa-se em Davos, nos Alpes suíços, onde nos nossos dias se reúne a nata pestilenta do capitalismo internacional.


Montanha Mágica foi, também, leitura de 2020 de Pedro Rodrigues


Sinais de Fogo

de Jorge de Sena
Edição: Livros do Brasil

O romance foi publicado postumamente, um ano depois da morte do autor, em 1979. Romance único de Jorge de Sena, fala-nos do despertar de um jovem, e do seu grupo de amigos, para a sexualidade, para a política e a literatura. A ação decorre na Figueira da Foz no ano de 1936 e tem como pano de fundo os tempos do Estado Novo e o início da Guerra Civil de Espanha. Este projeto romanesco ficou incompleto, o autor pretendia uma obra de grande dimensão cuja designação genérica seria Monte Cativo, é de uma erudição e de um rigor linguístico e literário incomum para um jovem escritor em princípio de carreira.

Um dos mais importantes romances da literatura portuguesa e, criminosamente, votado ao esquecimento.

"Sapiens", de Yuval Noah Harari: uma das leituras de Vítor Cardeira, ecm 2020

Sapiens : História Breve da Humanidade

de Yuval Noah Harari
Edição: Elsinore

Best-seller dos dias de hoje, incensado pela crítica e pelos leitores, foi-me tão intensamente recomendado que acabei por me abalançar pelas suas páginas. O livro lê-se com agrado e de forma escorreita. Bem escrito, linear, com ideias interessantes e sem grandes complexidades, está bem dentro do que se quer para um livro de sucesso global. Para mim, antropólogo de formação, muitas das ideias desenvolvidas no livro não constituem novidade de escancarar os maxilares, diria até que não concordo com muitas das afirmações do autor, como por exemplo a de que a vida piorou substancialmente do paleolítico para o neolítico. Está muito na moda o paleo, até na dieta alimentar, mas os coitados morriam aos vinte e poucos anos, Harari diz o contrário, mas não me convence, e os velhos, as mulheres grávidas e as crianças eram um repasto frequente dos grandes predadores.

Achei muito curiosa, se bem que expectável, a possível utilização pelos Estados Unidos, e possivelmente por outros, de moscas biónicas. Estas não só seriam enviadas para todo o mundo com espiãs invisíveis, bem como funcionariam como balas em casos de alguém a abater. Aliás, e isso nem é muito desenvolvido e a pandemia já o anuncia, o futuro será da nanotecnologia e da biologia celular e molecular.

É, de qualquer forma, uma obra desafiadora, interessante e inteligente, uma perspetiva aberta e curiosa sobre a nossa História e o impacto dos seres humanos no planeta.

"Odisseia", tradução de Frederico Lourença: uma das leituras de Vítor Cardeira, ecm 2020

Odisseia

de Homero
Edição: Quetzal

A epopeia homérica é a grande alma da civilização ocidental. Escritas umas centúrias antes dos evangelhos, a Ilíada e a Odisseia constituem a génese da cultura ocidental. Como a qualquer indivíduo, as narrativas em questão não me eram estranhas, mas nunca me tinha enchido de coragem para ler nenhuma delas. Como me foi oferecida a Odisseia traduzida, e minuciosamente revista, por Frederico Lourenço, aventurei-me e pus-me a navegar “no mar cor-de-vinho” por onde Odisseu/Ulisses penou até chegar a Ítaca. Curiosamente, perante a volumetria da obra, e a possibilidade de encontrar uma escrita difícil e sinuosa, a viagem foi de puro gozo. Os vinte e quatro cantos que compõem a obra leem-se com um prazer e um deslumbramento constantes e a descoberta de novas aventuras produzem um encantamento até ao fim.

Também muito boas são as notas de Lourenço no final de cada canto. Pese embora muitos termos técnicos como hexâmetros, pés dáctilo, anapesto ou espondeu, acrescenta muita informação que esclarece dúvidas sobre o texto, bem como questões de natureza linguística, geográfica ou histórica e revela ainda detalhes sobre o possível autor, a obra e a sua comparação com a Ilíada.

Filmes

O ano não foi muito bom para o visionamento de filmes em sala de aula e, por isso, não foi um ano muito cinéfilo, no meu caso.

No entanto, não poderia deixar de referir estes três extraordinários filmes que vi durante o ano de 2020.

Música

Talvez o que mais mudou nos meus comportamentos, durante o ano. Ouvi música como nunca.

Mas, sobretudo, música antiga, música clássica. Especialmente ópera.

Deste ano, saúdo este regresso de uma cantora que já fazia parte das minhas preferências…

"Fetch the Bolt Cutters", de Fiona Apple, sugestão musical de Vítor Cardeira

O álbum Fetch the Bolt Cutters, de Fiona Apple, transformou-se, depois de uma ausência prolongada da autora, como um fósforo, no disco que será recordado quando estes tempos cruéis de confinamento passarem a habitar a memória. Canções profundamente pessoais rasgando a pele e mergulhando nos mais profundos e labirínticos estratos da mente. Mas, ao mesmo tempo, globais e rastejantes através do plasma nevoento da modernidade.


Vítor Cardeira

nascido em 1958, em Conceição de Tavira, Algarve,
Antropólogo e professor
(agricultor de vez em quando e exorcista de palavras inúteis),
bloguista no quintacativa,
um homem como outro qualquer com tendências para o silêncio e para a misantropia,
leitor compulsivo.
Lema de vida: nunca incomodar


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