Convidei alguns dos meus amigos para nos revelarem os seus top de 2020: livros, filmes, discos, notícias… o que entendessem que mereceria destaque. Jorge Matos, Historiador, destaca seis livros.
Caminhando pelos livros em 2020
2020 foi um ano terrível. Daqui a umas décadas dir-se-á que foi o ano da epidemia, da incerteza, da angústia, da morte… o ano da peste.
E eu comecei o ano a reler A Peste [Lisboa : Livros do Brasil], de Albert Camus: a ler o livro, a reconhecer-me e a reconhecer-nos, a adivinhar-me e a adivinhar-nos. Conhecia a obra há muito tempo, mas nunca a tinha lido da forma como a li em Março de 2020, andando para trás e para a frente, lendo e relendo, até chegar ao formidável desfecho quando a cidade de Oram voltou a abrir as suas portas, porque já não tinha peste. Uma espécie de cansaço invadia as pessoas. E, apesar dos festejos, havia em toda a gente uma espécie de fastio da vida. Fixei-me na ideia de que, volvido o tempo sem fim da epidemia, as pessoas parecia terem alcançado ao porto com que sonharam, mas já não reconheciam quem os esperava. Assim suponho que seremos nós quando isto acabar, um dia. Vi essa hipótese com optimismo e esperança, mas ela vai-se desvanecendo com o andar do tempo.
A leitura e a escrita faz parte do meu trabalho, de forma que me pareceu sempre que nada afectaria o caminho normal dos meus trabalhos como historiador. Enganei-me. Não tenho memória de tão fraca produção, como a de 2020. Refiro-me àquela produção contabilizável para efeitos de avaliação dos centros de investigação: a absurda contabilidade bibliográfica institucional. Apesar disso foi o ano em que assumi, de forma quase descarada, a liberdade de ler o que me apetecesse e me desse prazer, sem me preocupar com os prazos dos trabalhos em curso.
E, pouco tempo depois de A Peste, resolvi-me a pegar em Vergílio Ferreira, para descobrir de imediato como é fascinante a sua literatura. Comecei pela Aparição, que tinha comprado há mais de 20 anos e que jazia numa estante, abandonado depois de lhe ter passado os olhos sem atenção. A Aparição [Lisboa : Quetzal] é o livro que não se consegue deixar de ler, e que nos deixa o cérebro aos saltos para ler outro e outro e outro livro do mesmo autor. E foi o que fiz, prendendo-me sobretudo no Cântico Final [Lisboa: Quetzal], provavelmente pelo carácter perturbante do que é um sonho tão real, quanto a vontade de ser e de viver. Devo ter lido, de seguida, uns quatro ou cinco livros de Vergílio Ferreira, da mesma forma obsessiva com que vivem quase todos os seus personagens. E o último deles foi Manhã Submersa [Lisboa : Quetzal], que também já tinha lido antes, mas que agora teve um sabor muito mais intenso e duradoiro.
Devo, contudo, dizer que fiz uma ligeira pausa, quando fui alertado por um amigo para um livro curiosíssimo de Carlo Cipolla: um historiador que já conhecia, com estudos de História Económica e História Social, especialmente sobre a época moderna. Tem até um estudo sobre a Expansão Portuguesa muito interessante. Mas o que me fez interromper as leituras de Vergílio Ferreira foi The Basic Laws of Human Stupidity: um livro muito pequeno, que se começa a ler pela graça que tem, mas que se percebe a, pouco e pouco, que o assunto é sério. Compreendemos por ele que a estupidez humana é uma das coisas mais bem distribuídas geográfica e socialmente, sendo independente de níveis de formação académica ou de classes sociais. E os estúpidos são muito mais perigosos que os bandidos, porque não actuam com nenhuma lógica previsível, podendo prejudicar-se a si próprios com os seus actos. É fantástico!… E é verdade. Também já é possível encontrar-se uma tradução portuguesa.
E finalmente – como aconteceu com muita gente – os últimos meses de 2020 foram dominados pelas eleições americanas, motivando-nos para ler tudo o que vinha sendo publicado pelos dissidentes da Casa Branca. Gente que, por boas e más razões, denunciava os detalhes absurdos do presidente dos Estados Unidos.
Mas, no meio de vários livros que nunca consegui ler até ao fim – até porque retratam um comportamento que se repete – fixei-me num trabalho mais abrangente sobre a onda de autoritarismo que cresce perigosamente no mundo. Refiro-me a O Crepúsculo da Democracia, o fracasso da política e o apelo sedutor do autoritarismo [Lisboa : Bertrand], de Anne Applebaum. A autora é jornalista e conduz o leitor através de factos que ela própria selecciona, num discurso carregado de pessimismo. E é tanto mais angustiante quanto é feito por uma pessoa que, até há muito pouco tempo, “navegava” na área dos conservadores britânicos, ou dos republicanos norte americanos.
[o autor não adota o novo Acordo Ortográfico]
Jorge Matos, nascido em Lisboa, em 1955
Historiador e Professor na Escola Naval e na Faculdade de Letras.
Com uma paixão grande pela Arte e uma necessidade enorme de compreender os Seres Humanos.
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