Aires Almeida

Aires Almeida: ganhos e perdas em 2020

MeuConvidei alguns dos meus amigos para nos revelarem os seus top de 2020: livros, filmes, discos, notícias… o que entendessem que mereceria destaque. A seguir, a síntese de Aires Almeida, professor de Filosofia.


Aires Almeida

Em outras ocasiões, Aires Almeida já nos confidenciou as suas preferências (musicais, filosóficas,…), aqui; e aconselhou a leitura de Guitar Zero – The Science Of Learning To Be Musical, aqui.


Os meus livros e discos
de 2020

LIVROS

Do que se publicou em Portugal em 2020 destaco uma meia-dúzia de livros, todos eles de filosofia, que é o que mais tenho lido. Não tenho a pretensão de acompanhar a maior parte do que se publica, pelo que certamente me escaparam outros livros muito bons. De maneiras diferentes, estive envolvido na publicação de três dos livros abaixo destacados. Claro que não é por eu ter estado envolvido na sua publicação que os destaco; é antes porque os considero bons que me empenhei para que fossem publicados. Os meus destaques são, então, os seguintes.

Da Realidade Física à Realidade Humana, de John Searle

Uma das sugestões bibliográficas de Aires Almeida

(Gradiva)

O mais recente livro de um dos filósofos contemporâneos de referência, que só ainda está disponível em português e italiano (nem sequer em inglês está publicado). É um livro abrangente e relativamente acessível a qualquer leitor intelectualmente curioso, além de filosoficamente estimulante, como quase tudo o que Searle escreve. Contrasta até com alguma da filosofia analítica ulltra-especializada e que, por isso, acaba por ser interessante apenas para os poucos que trabalham nas áreas a que dizem respeito (sem desprimor para esse tipo de trabalho, que também é necessário). Aqui não se está a afinar detalhes nem a apertar parafusos filosóficos, mas antes a defender, articular e fundamentar grandes ideias. E tudo isso é feito com o rigor filosófico e a devida atenção às subtilezas que caracterizam filósofos do nível de Searle.

Três Diálogos Sobre a Morte, de Pedro Galvão

(Gradiva)


Um livro original, rigoroso e de um autor português. É original não apenas no panorama filosófico nacional, pois não se tem notícia de outros livros que nos apresentem de forma tão viva o debate filosófico sobre a natureza da morte e o eventual mal que ela acarreta. Em parte, isso deve-se também à opção pela forma do diálogo filosófico. Trata-se de diálogos também entre a própria história da filosofia e a discussão contemporânea sobre o tema. Não tenho conhecimento de melhor livro de filosofia publicado no último ano por um autor português.


Três Diálogos Sobre a Morte foi o livro de 2020 escolhido por Rolando Almeida.


Cinco Ensaios Lógico-Filosóficos, de Gottlob Frege

(Guimarães)

Este livro reúne vários textos fundamentais para a filosofia contemporânea, em particular o influentíssimo “Sobre o sentido e a denotação”, mas também “Sobre conceito e objecto” e outros. Há muito que alguns destes textos que deviam estar traduzidos para português. E não poderia haver melhor tradutor que António Zilhão, como é o caso. Trata-se, portanto, de uma tradução de grande qualidade e rigor filosóficos.

Uma História da Filosofia, de A. C. Grayling

(Ed. 70)

Não é apenas mais uma história da filosofia, pois há qualidades que esta tem e que outras, igualmente muito boas, não têm. Não só por abordar outras tradições filosóficas (indiana, chinesa, persa-árabe e africana) além da europeia, mas também porque não evita a filosofia contemporânea mais recente, tanto da chamada “tradição analítica” como da chamada “tradição continental”. E o seu autor, A. C. Grayling, é dos poucos à altura de uma tarefa destas. E o tradutor, Desidério Murcho, dispensa recomendações.

Outro livro de 2020 escolhido por Aires Almeida

Utilitarismo e Ensaios Sobre Bentham, de John Stuart Mill

(Bookbuilders)


Estão disponíveis outras traduções de Utilitarismo, uma obra fundamental da filosofia. Mas o que esta tradução de Pedro Galvão traz de novo, além da sua útil introdução, é o bónus dos três ensaios sobre Bentham, uma das mais importantes influências sobre Mill. Uma nota positiva também para a qualidade física do livro, com capa muito interessante e papel muito leve.

Investigações Estéticas: Ensaios sobre filosofia da arte, de Jerrold Levinson

(Afrontamento)


Este livro tem data de Dezembro de 2020, mas só agora começará a estar disponível nas livrarias (se o confinamento o permitir). Jerrold Levinson é simplesmente um dos mais importantes, influentes e discutidos filósofos da arte contemporâneos e suspeito que a estética e a filosofia da arte precisam, entre nós, de experimentar ir além da reflexão frequentemente obscura, desconexa e indisciplinada da primeira metade do século XX. O debate nestas áreas nunca foi, de resto, tão participado e produtivo como nas últimas décadas, e Levinson é um dos protagonistas centrais, juntamente com Danto, Dickie, Carroll, Walton, Scruton e outros. Este livro consiste numa selecção única de textos de Levinson: sobre a definição de arte (inclui o texto de referência sobre a definição histórica, a qual é suposto ser discutida no 11º ano), sobre filosofia da literatura, sobre filosofia da música, sobre a relação entre arte e emoção, entre arte e pornografia, e ainda sobre a natureza do humor, concluindo com um ensaio iluminante sobre a noção de valor intrínseco. A selecção de ensaios foi feita por mim e pelo Vítor Guerreiro, com a ajuda do próprio Levinson, que também escreveu uma curta introdução de apresentação dos ensaios selecionados, além da minha introdução e do Vítor.

DISCOS

Há muitíssima música de 2020 que simplesmente me passou ao lado. Pareceu-me, em todo o caso, um ano muito fraco. Apesar de tudo, o melhor que me lembro de ter ouvido (e tive de ir confirmar se eram discos de 2020) foi:

The New Abnormal, The Strokes

Gostei do primeiro, e já muito distante, álbum dos The Strokes. Era um disco com canções aparentemente simples e diretas, guitarras bem ritmadas e melódicas, além de uma voz ligeiramente indócil e sedutora. Depois disso, deixei de ligar e o pouco que calhava ouvir pareceu-me bastante mais fraco. Mas este The New Abnormal foi uma boa surpresa, não porque tenha havido um regresso às origens, mas antes por terem sabido mudar de rumo e se terem tornado decididamente mais pop do que rock, sem preconceitos. Trata-se de uma reinvenção, em que até o falsete tão comum em muita música pop é amplamente usado sem qualquer pudor. A música pop, quando é inspirada, também pode ser boa música. Como esta.

Shortly After Takeoff, BC Camplight


Tropecei neste disco por acaso e notei alguma loucura contida naquelas canções estranhas, que ora parecem vigorosas ora parecem frágeis. Os próprios títulos das canções são algo inesperados e até divertidos, como “I only drink when I’m drunk”, “Cemetery lifestyle”, “I want to be in the Mafia” ou o poético, e não tão divertido, “Arm around your sadness”. No Spotify vi quem era esse tal BC Camplight e lá descobri que se trata de Brian Christinzio, um americano de Filadélfia estabelecido há alguns anos em Inglaterra (Manchester). Parece que a sua música o ajuda a conviver com a sua doença mental, que não faço ideia qual seja. Seja qual for, isso explica por que razão tudo aquilo soa vagamente estranho, mas também sincero. E soa bem.

Shabrang, Sevdaliza


Este é o último disco da iraniana Sevdaliza, a que nunca tinha dedicado grande atenção, apesar do seu sucesso como cantora e compositora. Confesso que me pareceu melhor na primeira audição do que me parece agora. Tem coisas interessantes, como a maneira como combina de forma muito simples diferentes culturas musicais: um misto de pop, de trip hop (sub-género que não costuma despertar a minha atenção) e de alguns laivos de canto persa. Tem algumas canções que acho algo irritantes. Mas poderíamos excluir três ou quatro canções e ainda restaria algo que vale a pena ser ouvido.

Rising w/ The Crossing, The Crossing e Donald Nally


Este é o último disco do aclamado grupo coral de câmara americano, especializado na interpretação da nova música coral e dirigido por Donald Nally. Trata-se de um disco gravado ao vivo, mas com um som fantástico, e que abre com uma peça do compositor David Lang intitulada “Protect yourself from infection”, escrita a pensar na pandemia que estamos a sofrer. Quem gosta de música coral, como é o meu caso, dificilmente se irá cansar dele. É, talvez, o melhor disco do ano. E uma bela capa, já agora.

Spem in Alium. Vidi Aquam, Ora Singers e Suzy Digbi


Se o anterior não for o melhor do ano, então poderá ser este, também de música coral, pelos britânicos e igualmente aclamados Ora Singers. Neste caso, interpretam obras tanto de compositores renascentistas — Thomas Tallis (Spem in Alium) e William Byrd — como de compositores contemporâneos — James MccMillan (Vidi Aquam).

Beethoven Songs and Folksongs, Ian Bostridge e Antonio Pappano


No ano em que se comemoraram os 250 anos do nascimento de Beethoven, muitos discos foram lançados com obras do compositor. O que mais me chamou a atenção foi o desta dupla, mais por causa do tenor Ian Bostridge do que propriamente pelo pianista Antonio Pappano (o piano parece-me, aliás, um pouco escondido atrás da voz de Bostridge).

PERDAS EM 2020

O ano de 2020 foi também marcado por perdas importantes, as mais lamentáveis das quais foram, em meu entender, as seguintes.

Roger Scruton (1944-2020)


Pode-se admirar muito um filósofo, mesmo que na maior parte das vezes não se concorde com as suas ideias? Claro que sim, e Scruton é, para mim, um dos melhores exemplos disso. Sempre aprendi muito ao ler Scruton, sobretudo com os seus livros de filosofia, invariavelmente desafiadores e intelectualmente estimulantes, obrigando-me a tentar pensar melhor e a encontrar melhores razões para discordar dele, o que era frequentemente o caso. Ele foi um dos grandes filósofos contemporâneos, que soube ser ao mesmo tempo tranquilo e corajoso na apresentação das suas ideias, e que tanto conseguia falar para o grande público como discutir com uma bagagem e uma notável precisão conceptual questões de grande complexidade e subtileza filosóficas. Apesar de muitos o conhecerem sobretudo como crítico cultural (um conservador) e filósofo político (um comunitarista conservador), era sobretudo como filósofo da arte e esteta (de inspiração kantiana) que eu mais o apreciava. As suas ideias nunca eram banais e, em muitos casos, ele era praticamente uma voz isolada. Um dos textos mais surpreendentes que li dele e que me levou a reavaliar as minhas intuições sobre o assunto, foi o muito debatido ensaio sobre a natureza da fotografia, intitulado “Fotografia e representação”, no qual defende, de forma muitíssimo persuasiva, não haver uma arte fotográfica, argumentando que as imagens produzidas por meios fotográficos não podem ser obras de arte a não ser na medida em que incorporam elementos constitutivos exteriores ao processo fotográfico. Assim, apesar de haver fotografias que são obras de arte, a fotografia não é, segundo ele, uma das formas de arte.

Judith Jarvis Thomson (1929-2020)


Thomson marcou definitivamente a discussão ética contemporânea. Apesar dos seus contributos nas áreas da metaética e da ética normativa, o seu trabalho mais influente encontra-se, sem dúvida, no ensaio “Uma defesa do aborto”, de 1971, com o qual alterou definitivamente o curso do debate ético sobre o assunto. Contrariamente ao que parecia estar assente até à publicação desse ensaio, Thomson argumentou que, mesmo que o feto seja uma pessoa e tenha direitos, como insistem os defensores pró-vida, o aborto é ainda assim moralmente permissível. É neste ensaio, em boa hora traduzido por Pedro Galvão para a colectânea por si organizada, A Ética do Aborto (Dinalivro), que Thomson usa o célebre argumento do violinista.

Gary Peacock (1935-2020)


O contrabaixista americano, frequentemente associado ao famoso trio Keith Jarrett, Gary Peacock e JacK DeJohnette, gravou uma apreciável quantidade de discos com muitas outras estrelas do jazz contemporâneo, como Paul Bley, Jan Garbarek ou Bill Frisell. Estou longe de conhecer sequer a maior parte do que gravou, mas conheço muito bem o excelente Oracle, um dueto com o guitarrista Ralph Towner. Já agora, Gary foi casado com a fantástica Annette Peacocke, a cantora e compositora jazz (jazz-rock, no caso) que provavelmente mais aprecio.

McCoy Tyner (1938-2020)


Este foi outro dos gigantes do jazz, provavelmente ainda mais marcante do que Peacock e que trabalhou com um leque impressionante de outros músicos jazz, de que destaco John Coltrane e Wayne Shorter. The Real McCoy é um excelente disco — não sei dizer se o melhor dele, pois há muitos outros que não me lembro de alguma vez ter ouvido.

Julian Bream (1933-2020)


Houve tempos em que a guitarra clássica de Julian Bream foi uma companhia quase diária para mim, em particular o seu Recital de Guitarra Espanhola, com peças musicais de Albéniz, Granados e Rodrigo. A propósito de Rodrigo, as suas gravações do Concerto de Aranjuez são frequentemente apontadas como interpretações de referência dessa popular obra do compositor espanhol. Seja ou não verdade, Julian Bream foi um dos maiores guitarristas clássicos do último século.

Krzysztof Penderecki (1933-2020)


O compositor polaco é um dos grandes nomes da música contemporânea e tem uma obra nem sempre fácil de ouvir. Apesar de não ser grande apreciador de obras consideradas fundamentais como Treno para as vítimas de Hiroxima ou Paixão segundo S. Lucas (confesso que os discos que tenho com essas obras não foram muito tocados), há outras obras que proporcionam experiências sonoras verdadeiramente marcantes, sobretudo quando ouvidas ao vivo, como me aconteceu ao assistir à telúrica De natura sonoris e à inquietantemente misteriosa Anaklasis.

Harold Budd (1936-2020)


Budd soube como poucos conferir à sua música ambiental o toque melódico e sedutor de alguma da melhor música pop. Depois da sua colaboração com Brian Eno, promovida pelo compositor Gavin Bryars, no álbum Ambient, Volume 2: The Plateaux of Mirror, foi ainda capaz de aperfeiçoar o género e gravar The Pearl, um disco notável, sem dúvida o seu melhor, assente no etéreo e acariciador piano que lhe era característico. Houve depois outras colaborações interessantes, tão características dos anos 80 do século passado, nomeadamente com o guitarrista Robin Guthrie e a cantora Elizabeth Fraser, ambos membros dos Cocteau Twins, de que resultou o interessante The Moon and the Melodies.


Sobre Aires Almeida…

…ficaram alguns dados nos artigos indicados no início: neste e neste. Edita o blogue Questões Básicas.


||| Artigo anterior desta série: Pedro Rodrigues: livros e música, no seu 2020

||| Artigo seguinte desta série: Jorge Matos caminhando pelos (seus) livros de 2020.

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