Desidério Murcho: 2020 em três ideias filosóficas fascinantes

Convidei alguns dos meus amigos para nos revelarem os seus top de 2020: livros, filmes, discos, notícias… o que entendessem que mereceria destaque. Desidério Murcho, professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto, no Brasil, destaca (a problematização de) três ideias filosóficas.


Em outras ocasiões, Desidério Murcho já nos confidenciou as suas preferências (musicais, filosóficas,…), aqui; e indicou bibliografia essencial para iniciação à Metafísica, aqui.


Três das ideias filosóficas mais fascinantes que me acompanharam em 2020

  1. Talvez a modalidade alética simplesmente não exista.
    A ideia de que a verdade tem modos é pelo menos tão antiga, numa formulação explícita, quanto a filosofia de Aristóteles. A ideia é que algumas frases são verdades contingentes, quando poderiam ser falsas, em contraste com outras, que são verdades necessárias, porque não poderiam ser falsas. Assim, se acaso a Terra poderia ser o quarto planeta a contar do Sol, apesar de ser de facto o terceiro, então a frase “A Terra é o terceiro planeta a contar do Sol” é uma verdade contingente. E se acaso nenhum triângulo poderia ter quatro lados, então a frase “Nenhum triângulo tem quatro lados” não é apenas verdadeira: é necessariamente verdadeira.

    Talvez isto seja simplesmente uma ilusão que resulta do facto de só se saber
    a posteriori aquele facto sobre a Terra, ao passo que se sabe a priori que nenhum triângulo tem quatro lados. Se for uma ilusão, não é rara: ao longo da história da filosofia, a confusão entre o que diz respeito aos nossos processos de tentar saber das coisas, e as próprias coisas, tem sido constante.

    Eu chamo “eliminativismo modal” a esta hipótese de que talvez a modalidade alética não exista. O primeiro desafio de qualquer perspetiva que vá nesta direção será explicar duas coisas cruciais. Primeiro, a modalidade lógica, porque parece óbvio que as verdades lógicas não são apenas verdadeiras: parecem necessariamente verdadeiras. Segundo, explicar como se bloqueia a prova lógica do necessário a posteriori, que emerge mal se faz uma extensão modal da lógica clássica. Acontece que se explica facilmente estes dois aspetos, pelo que a hipótese é pelo menos inicialmente promissora.

     

  2. Talvez o chamado problema da indução não exista.
    O que em filosofia se entende com a expressão “o problema da indução” é uma suposta dificuldade em fundamentar adequadamente o raciocínio indutivo, dificuldade que, supostamente, não existiria no caso dedutivo. O problema tem historicamente origem em Hume, mas o texto dele é suficientemente denso conceptualmente para não ser óbvio que ele entendesse o problema como mais tarde viria a ser entendido. E que maneira é essa?

    É simplesmente que há uma dificuldade na justificação ou fundamentação do raciocínio indutivo porque por melhor que seja, há sempre a possibilidade meramente lógica de a conclusão ser falsa, coisa que não acontece no caso dedutivo. Eis uma previsão indutiva: “Quando se lança um dado com seis lados, a probabilidade de sair três é 1/6”. Isto é razoável, mas é logicamente possível que seja falso. Se o dado estiver viciado, a probabilidade de sair três não é 1/6. E se o dado for feito de um material desconhecido, talvez expluda ao ser lançado. Ou talvez se transforme num elefante cor-de-rosa. Em termos puramente lógicos, há sempre infinitas possibilidades que são simplesmente excluídas quando raciocinamos indutivamente, mas não quando raciocinamos dedutivamente. Neste último caso, não há qualquer possibilidade, ainda que meramente lógica, de um cubo não ter seis lados iguais.

    Tudo isto é indisputável, só que não prova que há aqui qualquer problema genuíno; só prova que o raciocínio dedutivo é diferente do indutivo. E uma vez que conseguimos distinguir com suficiente precisão o bom do mau raciocínio indutivo, como é que há aqui realmente um problema genuíno?

    A primeira dificuldade mortal é que, mesmo admitindo que há um problema qualquer com a fundamentação do raciocínio indutivo, no fim fica tudo na mesma, pois iremos continuar a usar os mesmos recursos estatísticos e probabilísticos, a mesmíssima lógica indutiva, para distinguir as boas das más induções. Esta é a primeira dificuldade mortal do suposto problema filosófico da indução: é que fica tudo na mesma, depois de um palavreado abstruso.

    A segunda dificuldade é que esse palavreado abstruso parece tolo, porque parece que é só a queixa de que o raciocínio indutivo não é dedutivo. Porém, nada há de especialmente mágico no raciocínio dedutivo; se nos interrogamos sobre os fundamentos da indução, é preciso que nos interroguemos sobre os fundamentos da dedução. E que interrogação seria essa? Em termos simples, seria a ideia de que não há justificação indutiva para a indução, porque isso seria circular, e também não há justificação dedutiva, porque é sempre logicamente possível que uma previsão indutiva seja falsa. A desgraça aqui é que se aplicarmos esta mesma interrogação ao caso dedutivo ficamos exatamente na mesma: justificar a dedução dedutivamente é circular, e indutivamente não se consegue fazer tal coisa porque nunca se exclui indutivamente as meras possibilidades lógicas que se exclui na dedução. Em suma, não parece haver qualquer problema filosófico genuíno com a indução.

     

  3. Talvez nenhuma ética deontológica seja promissora.
    As éticas deontológicas (não confundir com os códigos deontológicos das profissões) caracterizam-se por fazer do dever (em grego,
    deon), o fundamento último da ação moral. Contrastam com outras éticas que fazem da felicidade, eudemonia ou florescimento, o fundamento último da ação moral.

    Assim, quando se considera que o único bem que não é meramente instrumental é o florescimento ou a eudemonia ou a felicidade, o que parece perfeitamente razoável, defende-se que só temos os deveres que temos precisamente porque esses deveres promovem imparcialmente o florescimento. Os deveres não são a finalidade última da ação moral; são apenas os meios para promover imparcialmente o bem-estar, o florescimento ou como se quiser chamar.

    Numa ética deontológica, pelo contrário, defende-se que a finalidade última da ação moral é simplesmente o cumprimento do dever, sendo que este não é instrumental para a promoção do florescimento. Não parece sequer remotamente promissor desenvolver uma teoria ética que vá nesta direção e que não seja um completo disparate.

    A primeira dificuldade é saber como se determina então quais são os nossos deveres, se não é a promoção imparcial do florescimento. Uma resposta influente aqui é a de Kant, que foi o deontologista mais influente; só que a sua resposta é uma emenda ainda pior do que o soneto. E a resposta é que temos o dever de fazer exclusivamente o que nos livra de cair em contradição. A ideia é que agir imoralmente é inevitavelmente cair em contradição, o que parece simplesmente falso. Quando uma pessoa mente só para ganhar vantagem, claro que não quer que lhe mintam a ela, quando a vantagem é alheia, e não dela. Mas isto não é uma contradição; é uma arbitrariedade. A pessoa não olha imparcialmente para a situação, claro; considera que está numa posição moral especial, de tal modo que ninguém lhe deve mentir a ela, mas é permissível que ela minta aos outros. Mas isto não é contraditório. É apenas arbitrário.

    Além disso, seria muitíssimo surpreendente que a negação de qualquer verdade moral fosse uma contradição. Por que razão seria de esperar tal coisa? A negação das verdades físicas não são contradições, nem as negações das verdades da geografia, nem da história. A que propósito seria de esperar que as coisas fossem diferentes no caso da moral? A dificuldade mais significativa, porém, é que simplesmente não se entende por que razão evitar contradições haveria de ser um mandamento moral. As contradições não trazem uma marca na testa a dizer que são imorais. Não é menos implausível defender que só somos morais quando agimos contradizendo-nos brutalmente, do que defender que basta não nos contradizermos para sermos morais. Procurar orientação moral na rejeição de contradições é tão implausível como procurá-la nas ordens de uma divindade, porque em ambos os casos ainda é preciso saber por que razão seria de dar valor a tais coisas.

    E a ironia é que a única resposta razoável a dar aqui mostra que a ética deontológica se constrói em cima de pressupostos nada deontológicos: a resposta razoável é que se obedecermos à divindade seremos recompensados com a beatitude eterna — o que Kant chamava o
    Reino dos Fins — e que se não nos contradissermos na ação moral seremos dignos… da felicidade eterna, que é exatamente o que Kant defendia. Como se vê, a felicidade reentrou pela porta do cavalo, e é isto que mostra que esta direção teórica não parece sequer remotamente promissora.

Desidério Murcho…

…nasceu em 1965, em Portugal. Estudou filosofia na Universidade de Lisboa e no King’s College London e é atualmente professor de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto, no Brasil. É autor de vários livros, com destaque para os seguintes Lógica: O Essencial (2019), Lógica Elementar: Raciocínio, Linguagem e Realidade (2019), Todos os Sonhos do Mundo e Outros Ensaios (2016), Sete Ideias Filosóficas que Toda a Gente Deveria Conhecer (2011), Filosofia em Directo (2011), Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade (2006), O Lugar da Lógica na Filosofia (2003) e Essencialismo Naturalizado: Aspectos da Metafísica da Modalidade (2002). É também o fundador e diretor da revista virtual Crítica.


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